terça-feira, 27 de maio de 2008

A PROFISSÃO DE DETETIVE QUESTIONADA EM FUNÇÃO DA INVASÃO DA INTIMIDADE DOS INVESTIGADOS

Versa o presente artigo sobre o conflito pricipiológico existente quando se põe em confronto o exercício da profissão de detetive particular em contraposição à inviolabilidade do direito a intimidade dos investigados.
Para maior facilidade didática, construímos uma situação hipotética, a qual passamos a expor: Tício, investigado, a pedido de sua esposa, sentiu-se ofendido em decorrência da atividade de determinado detetive particular, que, no exercício da profissão, violou seu direito constitucional à intimidade, constituindo-se a ofensa em fatos, como: ter seguido seus passos durante duas semanas, fotografando-o nos diversos lugares em que esteve, gravando conversações com terceiros e identificando todas as mulheres com as quais manteve contato. Face ao caso exposto, pergunta-se: caberia dano moral a Tício, ou o detetive tem garantido constitucionalmente o exercício de sua profissão?

A intimidade e a vida privada são direitos fundamentais invioláveis previstos na Carta Magna, em seu art. 5º, inciso X.
Conforme leciona Uadi Lammêgo Bulos, “ a intimidade é o modo de ser do indivíduo, que consiste na exclusão do conhecimento alheio de tudo quanto se refere ao mesmo indivíduo ( Adriano Cupis ). Revela a esfera secreta da pessoa física, sua reserva de vida, mantendo forte ligação com a inviolabilidade de domicílio, com o sigilo de correspondência e com o segredo profissional.”
Em sendo violada, o próprio inciso X, do art. 5º suso citado, assegura o direito a indenização pelo dano material ou moral que dessa violação decorra.
Neste estudo, iremos discutir a partir de que ponto a profissão de detetive, legalmente regulamentada pela lei federal n.º 3.099, de 24 de fevereiro de 1957, passa a invadir a intimidade e a privacidade de seus investigados, vindo a ensejar, desta forma, uma possível demanda judicial visando a reparação dos danos causados.
Sabe-se que a profissão de detetive deve manter correspondência com a atividade policial investigatória. Sabe-se também, que a atividade policial investigatória possui limites legais no seu proceder.
A investigação policial desenvolve-se principalmente na fase do inquérito penal, e visa à obtenção de provas, ou ao menos indícios, de autoria e materialidade do delito que irão subsidiar o oferecimento da denúncia ou queixa, conforme seja a natureza da ação penal.
Os limites que acima mencionamos encontram-se presentes principalmente nesta fase de captação de provas, visto que a lei recusa qualquer tipo de prova obtida ilicitamente. Neste sentido dispõe o art. 5º, inciso LVI, quando versa que “ são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”.
Sendo assim, e considerando que a forma de atuar dos detetives deve pautar-se em equivalência à atividade policial investigatória, não se pode admitir a utilização indiscriminada, pelos detetives, de quaisquer meios para o cumprimento de suas obrigações profissionais, previamente contratadas com seus clientes, devendo, portanto, estarem sempre limitados à licitude das provas colhidas.
Há de reconhecer-se ainda, que o limite da atividade profissional de detetive não se restringe a questão da licitude das provas obtidas. Em maior grau, deve limitar-se ao respeito aos direitos fundamentais constitucionalmente previstos, entre eles, o direito a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, adiante abordados.
Deve-se observar, da mesma forma, que inviolável também é o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.
Por outro lado, o exercício da atividade profissional de detetive, também é um direito fundamental previsto constitucionalmente, conforme se pode observar nos incisos XIII e XIV, do art. 5º da Constituição Federal, quando dispõem, respectivamente, que “ é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”, sendo ainda “ assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional.”
Estamos agora diante de um dilema, a saber : se os dois direitos contrapostos possuem hierarquia constitucional, qual deles deve prevalecer ?
A doutrina denomina o problema aqui proposto de colisão de direitos fundamentais. Para dar-lhe solução, inicialmente faz-se necessário salientar que não há que se cogitar a respeito de qual direito possui maior hierarquia, visto que os dois são direitos fundamentais previstos constitucionalmente, e , portanto, possuem a mesma hierarquia legal.
Normalmente, quando nos deparamos com um conflito de normas, utilizamos o que a doutrina denomina de critérios para solução de antinomias jurídicas, que são três: o critério cronológico, o critério hierárquico e o critério da especialidade.
Pelo critério cronológico, considerando duas normas de mesma natureza, ou seja, duas normas gerais ou duas normas especiais, deve prevalecer a norma mais recente. Pelo da hierarquia, da mesma forma, considerando duas normas gerais ou duas normas especiais, deve prevalecer a norma de maior grau hierárquico; e pelo critério da especialidade, considerando duas normas de mesma hierarquia, a norma especial prevalece sobre a norma geral.
Poder-se-ia ainda partir para a utilização de metacritérios, os quais são utilizados quando da ocorrência de conflito entre os próprios critérios. Assim, entre duas normas, se em uma prevalece o critério cronológico e em outra prevalece o critério da especialidade: aplica-se a que prevalece o critério da especialidade. Se em uma prevalece o critério hierárquico e em outra o critério cronológico: aplica-se a que prevalece o critério hierárquico. Por fim, se em uma prevalece o critério da hierarquia e em outra prevalece o da especialidade, a doutrina não é pacífica quanto ao qual deve ser aplicada.
Ocorre que neste caso, estamos diante de uma situação singular, pois o conflito existente apresenta-se entre normas de mesma hierarquia, criadas no mesmo instante e de conteúdo tal que não se permite dizer que uma seja especial em relação a outra, não se podendo, desta forma, utilizar nenhum dos três critérios comumente utilizados, nem dos metacritérios.
Isto posto, a nosso ver, a solução para o conflito encontra-se no campo da hermenêutica jurídica, em conjunto com os princípios da razoabilidade e proporcionalidade. Por meio da utilização do método de interpretação sistemática, conseguir-se-á harmonizar os direitos aparentemente contrapostos, flexibilizando as disposições contidas em ambos os dispositivos constitucionais.
Assim sendo, cremos que a solução adequada seria compreender os dispositivos constitucionais com a seguinte redação:

É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer, sendo assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional, desde que resguardados o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas e os direitos à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas, sendo assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

Observe-se que excluímos de tal interpretação a possibilidade de quebra de sigilo das comunicações telefônicas, visto que a atividade de detetive não é passível de enquadramento em nenhuma das duas hipóteses previstas na Constituição.
Quanto ao exercício da atividade de detetive, a partir da interpretação acima realizada, chegamos a seguinte conclusão: é livre o exercício da atividade profissional, sendo assegurado o acesso à informação necessária ao desempenho da mesma e resguardado o sigilo das fontes, desde que preservados o direito à intimidade, à vida privada, à honra e a imagem de seus investigados, não se admitindo ainda a violação do sigilo de suas correspondências e de suas comunicações telegráficas, telefônicas e de dados, sob pena de responsabilização civil pelos danos causados.
Tais restrições podem parecer demasiadas de tal forma a quase impossibilitar o exercício da profissão, mas deve-se ter em mente que esta visa à satisfação de um interesse puramente individual do contratante dos serviços de investigação, além do que se o interesse decorre da suspeita de algum tipo de infração penal, o Estado, por meio de suas polícias, é que possui atribuição legal de investigar e coibir atos ilícitos.
Por fim, no que concerne ao caso proposto, questiona-se a possibilidade de interposição de ação reparatória, por parte do investigado, pelos danos morais causados em decorrência da investigação.
Passemos a analisar os fatos apontados pelo interessado:
1) O investigador seguiu os seus passos durante duas semanas: consideramos ato perfeitamente lícito e abrangido pela atividade profissional do detetive, não ensejando nenhuma indenização.
2) O investigador fotografou-o nos diversos lugares em que esteve: consideramos ato realizado com abuso de direito e violador do direito a imagem do investigado, ensejando, desta forma, a possibilidade de interposição de ação reparatória por danos à imagem, que se apresenta como espécie de dano moral.
3) O investigador gravou conversações com terceiros: da mesma forma, consideramos ato realizado com abuso de direito e violador do direito ao sigilo das comunicações telefônicas e violador do direito à vida privada do investigado, ensejando, desta forma, a possibilidade de interposição de ação reparatória por danos morais.
4) O investigador identificou todas as mulheres com as quais o investigado manteve contato: consideramos ser o ato lícito e abrangido pela atividade profissional do detetive, não dando fundamento à indenização por danos morais.
Em suma, apesar da atitude do investigado ser socialmente considerada imoral, consideramos ser possível ao mesmo a interposição de ação indenizatória, fundada na teoria do abuso do direito e nas disposições constitucionais neste trabalho citadas, visando reparar o dano moral sofrido.

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